Por uma inversão de perspectiva do patrimônio histórico – do ponto de vista da paisagem urbana
É corriqueiro pensarmos no espaço jesuítico, ou no Pateo do Collegio, a partir de referências construídas socialmente; tais como as referências imagéticas representadas, ou pela Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo, do Italiano Amadeu Zani, ou, com base na mais intrigante e reconstruída referência desse espaço – a Igreja do Beato Anchieta, fundada pela Cia. de Jesus no século XVI.
Durante cinco períodos distintos o Colégio sofrera alterações, desde seu primeiro projeto vernacular em pau a pique, passando pelo segundo projeto em taipa de pilão, até equivaler-se ao que é hoje, um projeto arquitetônico sacro, réplica que homenageia a versão do segundo projeto do século XVI, reconstruído no século XX, em 1979, e dedicado ao Beato José de Anchieta.
Especialmente neste último caso, outra referência visual marcante são duas fotografias em papel albuminado, que Militão Augusto de Azevedo legou-nos da versão oitocentista do Colégio, à época do padroeiro Senhor Bom Jesus, datadas de 1862 e 1887. As imagens em questão denotam uma das primeiras dinâmicas modernas da Cidade de São Paulo, o tempo em que os primeiros transeuntes apropriaram-se do espaço das ruas; em seguida, as prosperidades da economia cafeeira propiciaram a São Paulo a emancipação da alcova provinciana.
Hoje, o uso ao qual está submetida a atual Praça do Pátio do Colégio é de ordem diversa, para além do turismo cultural cotidiano. O Pátio pode ser reconhecido como uma espécie de pórtico referencial, cuja passagem implica muitos outros caminhos – do Centro ao Bairro ou vice-versa, um fluxo diário de muitos veículos e transeuntes.
O Pátio do Colégio tem uma dinâmica própria, hospeda sujeitos que habitam as ruas e que ali encontram uma reminiscência entre “a casa e a rua”, dentro de uma lógica – ora de desassossego, ora de conforto. O espaço público do Colégio, ainda não privatizado totalmente – com grades – propicia ainda, aos finais de semana, além da presença corriqueira de turistas e transeuntes, a presença de skatistas, bastante nítida nesta nova versão pública do Pátio do Colégio.
Olhar ao redor e desconstruir o que foi construído socialmente; desafiar a nossa “possível deficiência visual” e desfazer a mecanização imaginária à qual fomos submetidos seria desvendar uma espécie de incógnita dessa faceta da memória patrimonial da cidade, cujas outras formas de recordação do espaço foram ofuscadas. Portanto, se só sabemos que o Pátio do Colégio é o monumento de Amadeu Zani, ou é a Igreja, não sabemos então de fato o que é o Pátio do Colégio.
O Pátio do Colégio, para além dos monumentos construídos socialmente em cartões postais, é uma realidade muito contraditória à beleza que o imaginário postal impõe, ou convida-nos à experiência de visualizar – imagens a serviço deste tipo de ideologia. Estranhar é preciso, na possibilidade de observar as diferenças, a partir do passado – espaço da experiência, cujas dinâmicas da paisagem urbana se movimentaram e encontraram no fluxo do tempo, o futuro – horizonte indeterminado.
A proposta é deter-se em uma inversão de perspectiva, na qual a hipótese que fundamenta a reflexão traduz a seguinte questão: “a paisagem urbana ‘fala’?” Seria possível pensar que esse é o atual Pátio do Colégio, ou o antigo Pateo do Collegio? A resposta é sim. Para além da discussão que envolve as características construídas socialmente do espaço patrimonial, deter-se em outra discussão de mesmo valor – intensa, com sorte! – quer dizer, tão interessante quanto a questão do patrimônio público é a questão do ‘ato fotográfico’. Não, não se trata de descrever esta foto, caro leitor; trata-se de uma discussão sobre as representações visuais do Centro Histórico da Cidade de São Paulo.
No que tange ao "realismo documental", próprio da imagem-ato codificada para esse fim, cujo ícone é o próprio Pátio do Colégio, a proposta seria inverter a perspectiva. A versão da perspectiva clássica é representada, ou pela Igreja do Beato José de Anchieta, ou pela Glória Imortal aos fundadores de São Paulo, do escultor italiano Amadeu Zani.
Eis então a questão. O automatismo contido no disparo fotográfico que, em suma, à sua particularidade natural inscreve a luz – ou na película fotográfica, ou no sensor digital de códigos algoritmos – sintetiza a construção imagética de algo. Neste caso, temos um índice que sintetiza a construção imagética da paisagem urbana.
Para tanto, é relevante considerarmos os principais aspectos semióticos da imagem fotográfica: o aspecto indiciário , que precede o seu aspecto icônico , próprio da imagem, cuja cumplicidade com o seu referente implica traço do real , conferindo-lhe o aspecto simbólico, um signo , cuja forma e o sentido seriam codificados culturalmente. Daí, temos: o índice (contiguidade física do referente na superfície sensível), isto é, a inscrição da luz, tanto na película quanto no sensor digital. A luz que o referente reflete, que é o assunto fotografado, emite a sua informação. É essa a informação que nos interessa. A luz inscreve-se (na película ou no sensor digital) sintetizando uma “escrita de luz”, ou seja, uma fotografia [da Praça do Pátio do Colégio]. Portanto, ao índice, o ícone , e ao símbolo, o signo , uma designação significante codificada pela cultura (no caso, os românticos cartões postais construídos socialmente).
Logo, o referente em questão pode, ou não, ser construído socialmente. É essa procedência que faz da imagem um documento de ordem pictórica; é o código (contexto cultural e ideológico) que confere à imagem sua finalidade – a de estar em um arquivo histórico ou em um museu de artes, por exemplo – e que sempre em sua gênese será precedida pelo índice . A imagem fotográfica tem a particularidade de ser inscrição de luz, própria de um dispositivo tecnológico, seja ele o mais elementar ou o mais contemporâneo. O índice da imagem fotográfica tem com a luz uma relação metonímica.
Todavia, é preciso explicitar que esta hierarquia de aspectos não deve existir nesta ordem; ora, tais aspectos estão sempre em devir, são contingentes teóricos que norteiam a ontologia dessa imagem fotográfica sobre o Pátio do Colégio, e, por sua vez, norteiam a discussão sobre a “fala da paisagem urbana”. Em outras palavras, este local e os demais locais da Cidade podem “dizer” algo sobre si, sim, por meio da fotografia. Assim, esses três aspectos, ferramentas conceituais, devem ser deslocados de acordo com o código da imagem – o código proposto agora é o da (des) construção social dos românticos cartões postais. O código proposto continua sendo de caráter postal, mas aqui seu expediente confere “outra” perspectiva sobre o Pátio do Colégio.
A questão posta lida com o problema de como a paisagem urbana poderia imprimir seu status dinâmico a partir da fotografia, ou seja, como a paisagem urbana, enquanto "o outro", poderia nos contar algo sobre o que ela é. A questão é da maior importância quando o assunto é apreender o máximo de registros sobre as transformações de uma cidade, que deverá sofrer, nas próximas décadas, transformações intensas.
5/9/2009
Fonte: ViaPolítica/A autora
Carla Bispo é fotógrafa. Atualmente é colaboradora da revista Retrato do Brasil , entre outras. A área de pesquisa que desenvolve é a fotografia do cotidiano da cidade de São Paulo. A partir dela observa, com o objetivo de interpretar nas dinâmicas da cultura urbana os possíveis fenômenos sociais, lançando mão de estudos etnográficos e análises antropológicas. Iniciou seus estudos fotográficos como autodidata no Sindicato dos Químicos, em 1997. Escolheu a temática da Cidade & Fotografia em 2006, quando passou a frequentar a Faculdade de Ciências Sociais da Escola de Sociologia e Política, e as disciplinas de Antropologia Visual e Sociologia da Cidade, na Universidade de São Paulo (USP), como aluna ouvinte.
Mais informações sobre Carla Bispo em www.flickr.com/people/rascunhos/